Apesar de saber que o visado desprezava a ideia da vida eterna, vejo-me impelido a partilhar convosco mais um elogio póstumo a José Saramago. Bem sei que sobre ele se publicaram inúmeros textos nos últimos dias e que o meu acrescentará pouco, mas o homem foi suficientemente controverso e o autor demasiado excepcional para me abster a escrever um curto texto.
Como democrata liberal que sou, escusar-me-ei a comentários acerca das convicções políticas de José Saramago. Estas eram sobejamente conhecidas e, como calculam, nada me agradavam. Porém, o homem sempre me impressionou tanto como o autor, se é que é possível distingui-los. Saramago foi o protótipo do “self-made man”, o melhor exemplo de que o trabalho árduo compensa. Contrariando tudo o que se poderia esperar de um miúdo pobre da Azinhaga nascido em 1922, Saramago acabou por triunfar no restritivo mundo literário, tendencialmente ocupado por indivíduos provenientes de um meio económico e cultural elitista, abastado.
Aos olhos do bom salazarista, Saramago teria nascido para ser um “ilustre desconhecido” , um honrado agricultor ou operário. Caso se tivesse resignado à sua condição humilde, teríamos perdido um dos maiores autores da segunda metade do século XX, um Prémio Nobel, e para quem desvaloriza este galardão, relembro que Jorge Amado já não poderá recebê-lo e que Milan Kundera ainda não foi distinguido. O seu percurso e a sua vontade marcadamente ateia de fazer a diferença neste mundo, deve servir de exemplo aos jovens que pretendam tornar este país num sítio realmente melhor, sem utopias socialistas no horizonte.
Posto isto, devo reconhecer o papel vital que Saramago teve para a língua portuguesa, contribuindo para a sua divulgação nos últimos anos. Relembrou-nos as suas origens humildes quando afirmou que o seu Nobel não lhe era destinado de forma particular, era antes um prémio para a boa literatura produzida em português, quer por autores portugueses já falecidos, quer pelos restantes autores lusófonos. Este tipo de publicidade é impagável e tornou Saramago numa figura incontornável da nossa história e do nosso património cultural. Nitidamente mais importante do que Sousa Lara e do que Aníbal Cavaco Silva.
Finalmente, gostaria de destacar o seguinte. Não há homenagem mais digna da obra de José Saramago do que ler e reler os seus textos fundamentais. O estilo por ele criado, nomeadamente a sua prosa inspirada na oralidade, a humanidade da sua escrita e a sua coragem permanente, que nunca o coibiu de criticar abertamente o poder político, ditatorial ou democrático, independentemente de concordarmos ou não com as suas convicções, fazem dele um autor obrigatório. Sem ele nunca perceberemos uma parte da nossa história nem o que faz de nós portugueses, apesar das suas ideias integracionistas com os nossos vizinhos espanhóis.
Talvez a benevolência expressa em obras como Ensaio sobre a Cegueira e Memorial do Convento, me faça lê-lo como um esquerdista romântico que acreditava na benignidade dos homens, um eterno sonhador que ousou voar na Passarola por si criada, fazendo por merecer as honras com que o presentearam e trabalhando incessantemente por deixar uma marca agradável neste mundo tenebroso.